“A morte de Ivan Ilitch” de Tolstói e o que significa ser paciente

Atualizado em 22/08/2024
Por Aline Albuquerque

“A morte de Ivan Ilitch” de Tolstói e o que significa ser paciente

Atualizado em 22/08/2024
Por Aline Albuquerque

“A morte de Ivan Ilitch” de Tolstói e o que significa ser paciente

Segundo o modelo tríade da vulnerabilidade acrescida do paciente, formulado por Boldt1, essa se caracteriza como física, emocional e cognitiva. Com efeito, “Ficar doente é um evento que aciona nosso sistema de defesas psíquicas, não somente imunitárias. Coloca em jogo nossa personalidade e nossos conhecimentos, nosso desenvolvimento psíquico e nosso sistema cognitivo.”2

Retrato de “Lev Nikolaevich Tolstoy” pintado por Ilya Yefimovich Repin em 1887 / Óleo sobre tela.

No sentido do modelo tríade de vulnerabilidade de Boldt, o processo de adoecimento nos desloca da nossa rotina, das nossas preocupações e do nosso estado emocional corriqueiro, nos situando de uma outra forma no mundo. Esse processo de deslocamento do paciente é descrito de forma magistral por Leon Tolstói, em sua obra “A morte de Ivan Ilitch”, publicada em 1886, e consagrada como a “novela perfeita”.

Ao longo do processo de adoecimento de Ivan Ilitch, descrito no livro, nos deparamos com a transformação das suas relações pessoais e profissionais em razão da doença, não diagnosticada até a sua morte. Além disso, o livro expõe a interação (ou a não-interação) de Ivan Ilitch com os médicos que supostamente deveriam cuidar dele. A relação de Ivan Ilitch com ele mesmo também é objeto da mudança em decorrência do seu adoecimento, o que faz com que questione a sua vida e se conecte com as suas memórias de infância. Ou seja, o processo de adoecimento é profundamente transformador, seja para expor as mazelas das suas relações superficiais e fúteis, ou para permitir-lhe que toque nas suas feridas mais recônditas, estabelecendo uma forma de conexão consigo inovadora em sua vida adulta, pois foi apenas vivenciada em sua infância. Assim, podemos dizer que o processo de adoecimento e a morte que o assombra provocam insights em torno do sentido da sua vida ou da sua falta, ou seja, indaga se grande parte da sua vida não foi uma mentira em busca de aprovação social e da manutenção de relações frívolas , talvez por medo de ser quem ele no fundo era.

Voltando à relação de Ivan Ilitch com os médicos, ele se ressente pelo fato de não ser escutado e da sua dor ser menosprezada, assim como suas emoções, como o medo de morrer e a angústia de não saber qual doença ele tinha. Interessante que dessa interação com os médicos, Ivan Ilitch, que era magistrado e condenava réus, suscita as similitudes entre o poder do médico e o do juiz, e a submissão do réu e a do paciente. No Tribunal e na consulta, médico e juiz diziam “Deixe tudo conosco e nós resolvemos as coisas”, endossando o papel de subalterno do paciente e do réu.

Ainda, o médico e o juiz têm o poder de traçar uma linha entre o normal e o anormal, “condenando” o paciente e o réu, o primeiro a uma doença e o segundo a uma pena. Nesse sentido, paramos para pensar até que ponto, para Ivan Ilitch e outros pacientes, a doença não é vivenciada como uma forma de punição, principalmente quando se trata de uma doença grave cujas causas não são encontradas pelo médico. O paciente questiona Deus e os seus propósitos, e pergunta: “Por que comigo?”; “O que eu fiz para merecer isso?” “Por que tanto sofrimento?”

A novela de Ivan Ilitch também traz à tona o fato de que o processo de adoecimento, que se dá no corpo e na mente do paciente, é sempre singular e impossível de ser totalmente comunicado e compreendido por quem está de fora, mesmo que sejam pessoas amorosas, empáticas e atenciosas. Esse processo é vivenciado no corpo do paciente e o máximo que se pode fazer é tentar, por meio do recrutamento da nossa empatia, nos conectar com as emoções, pensamentos e percepções do paciente sobre esse processo. Por isso não faz sentido substituir o Cuidado Centrado no Paciente pelo Cuidado Centrado na Família, simplesmente pelo fato de que adoecer é uma experiencia corporal e impossível de ser compartilhada integralmente. Nesse sentido, as mudanças no corpo de Ivan Ilitch são notadas por ele diuturnamente, fazendo com que a sua degradação física o conduza a uma condição de mais fragilidade e angústia. Essa degradação física, a sua impossibilidade de se higienizar, de se alimentar e de se manter em pé, aumentam a sua sensação de impotência diante da doença e isso não é passível de ser vivenciado por nenhuma outra pessoa, nem mesmo por Gerassim, o único cuidador que lhe acolhia e o confortava. Por outro lado, importante dizer que mesmo reconhecendo o fato de que a família e outras pessoas não conseguem vivenciar o processo de adoecimento como o paciente, podem validar as suas emoções e isso faz toda a diferença. Como a mulher de Ivan Ilitch e a sua filha se desconectaram totalmente da sua experiência, ele se sentiu abandonado e desorientado, principalmente sobre como viver o sofrimento de se ver finito.

O processo de adoecimento e de morte de Ivan Ilitch foi solitário e cheio de dor, principalmente em razão de não ter com quem compartilhar aquilo que sentia e percebia, ou seja, que estava morrendo. As pessoas ao seu redor não falavam sobre isso, fizeram um “pacto do silêncio”, mas ele sabia que ia morrer e esse peso não podia ser compartilhado. Ainda hoje, muitos pacientes, em situação de terminalidade, não são informados pelo médico e por familiares, sob o argumento de que estão sendo protegidos.

No caso de Ivan Ilitch, ele percebeu que a mentira envenenadora do seu processo de morte era a mesma que envenenou a sua vida. Também não encontrou no médico a aliança terapêutica que poderia lhe tirar desse poço de solidão e de dor, o médico vestia o fraque para a visita e representava o seu papel social, cumprindo os protocolos de desapego emocional e de atenção à saúde física do paciente. Ivan Ilitch viu as mesmas mentiras ditas pelos advogados nos Tribunais para defender o seu cliente, nas quais, ele como magistrado, fingia acreditar. Assim, no fundo, ele conhecia esse pacto social hipócrita.

Há muito o que ser dito sobre essa magnífica obra, mas meu objetivo foi o de apenas fazer algumas reflexões sobre o processo de adoecimento e de morte do paciente, com base na arte de Tolstói. É sabido que a arte tem esse poder extraordinário de, tal como a experiência radical de adoecimento, de nos deslocar e de fazer emergir emoções e estados mentais inimaginados. “A morte de Ivan Ilitch” tem esse poder da arte, de permitir nos aproximar do processo de adoecimento, que expõe a fragilidade humana e a experiência solitária da dor, e da necessidade de construirmos relações humanas amorosas e empáticas, as quais aliviam nosso estado de desamparo. Portanto, a obra expõe a singularidade de ser paciente, endossa as teorias sobre a sua vulnerabilidade acrescida e evidencia o quanto a aliança terapêutica e as suas relações significativas são fundamentais para o cuidado em saúde.

1 BOLDT, Joachim. The concept of vulnerability in medical ethics and philosophy. Philosophy, Ethics and Humanities in Medicine, v. 14, n. 6, 2019.

2 LINGIARDI, Vittorio. Diagnóstico e destino. Belo Horizonte: Âyné, 2021.

“A morte de Ivan Ilitch” de Tolstói e o que significa ser paciente

Aline Albuquerque, aqui no Blog.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília. Coordenadora do Observatório Direitos do Paciente da Universidade de Brasília. Pesquisadora Visitante na Universidade de Oxford. Pós-doutorado pela Universidade de Essex. Doutorado em Ciências da Saúde. Autora dos livros Bioética e Direitos Humanos, Direitos Humanos dos Pacientes e Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. Membro da Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente. Membro do Comitê Hospitalar de Bioética do Grupo Hospitalar Conceição e do Comitê Hospitalar de Bioética do Hospital de Apoio de Brasília. Membro do Redbioética da UNESCO.

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