Por que ainda o Principialismo como teoria ética da prática clínica? 

Atualizado em 14/10/2022
Por Aline Albuquerque

Por que ainda o Principialismo como teoria ética da prática clínica? 

Atualizado em 14/10/2022
Por Aline Albuquerque

Por que ainda o Principialismo como teoria ética da prática clínica? 


Você já se perguntou por que o mantra dos quatro princípios – respeito à autonomia, beneficência, não maleficência e justiça – ainda é adotado nas aulas de Bioética, nos Comitês Hospitalares de Bioética e nos artigos sobre Bioética Clínica. Chama a atenção o fato de que o Principialismo, teoria formulada na década de setenta por Beauchamp e Childress, que se estrutura nos quatro princípios assinalados, ainda é hegemônico no Brasil e em várias partes do mundo.

Muitos artigos já foram escritos apontando as suas falhas, as suas fragilidades e os seus problemas de aplicação. Mesmo assim, notadamente no Brasil, quando se fala de Bioética, muitos aludem ao Principialismo e fazem referência aos quatro princípios como “princípios da Bioética”, ignorando o fato de que são apenas princípios de uma das várias teorias bioéticas.

Este texto breve não tem a intenção de demonstrar resultados de pesquisa sobre o tema, ou seja, não se objetiva trazer explanações comprovadas para a hegemonia do Principialismo, mas apenas levantar reflexões que convergem para um único ponto:, o Principialismo serve ao paternalismo e à manutenção da assimetria de poder nos cuidados em saúde.

A primeira reflexão diz respeito ao fato de que os “dilemas ou conflitos bioéticos” do Principialismo são aqueles que trazem desconforto para os profissionais de saúde, notadamente médicos. Ou seja, o Principialismo confere privilégio epistêmico para os médicos, cuja voz é amplificada ao terem o condão de demarcar aquilo que é moralmente conflitante ou não.

Por exemplo, quando um paciente adulto capaz recusa determinado tratamento, isso não é um conflito moral para o paciente, mas sim para o médico quando decide não respeitar o direito do paciente à recusa. Neusa linha, aquilo que é moralmente relevante para os pacientes, como a desatenção dos profissionais, o desrespeito à sua decisão ou a desinformação, não é considerado pelo Principialismo como uma questão moral importante, mesmo que diga respeito ao trato humano e ao comportamento dos profissionais de saúde.

A primeira reflexão diz respeito ao fato de que os “dilemas ou conflitos bioéticos” do Principialismo são aqueles que trazem desconforto para os profissionais de saúde, notadamente médicos

A segunda reflexão aborda aquilo que o Principialismo escolhe como questão bioética, ou seja, não trata de situações do cotidiano da prática clínica, transparecendo que as questões morais dessa prática já estão resolvidas ou superadas. O Principialismo trata apenas de questões excepcionais.

O que não reflete aquilo que incomoda  para os pacientes, pois para a sua maior parte, o que importa é o cotidiano do seu cuidado, que se encontra ainda longe de seguir preceitos morais adequados. Portanto, uma teoria ética dos cuidados em saúde deveria lidar priomordialmente com problemas morais do cotidiano que impactam diretamente na qualidade do cuidado em saúde, como os relativos à segurança do paciente e à comunicação.

Outra reflexão a ser levantada envolve o rechaço feito pelo Principialismo de consensos morais amplamente reconhecidos no mundo, como o direito à recusa do paciente, sob o argumento de que o princípio da beneficência justifica a obrigação médica de adotar determinado tratamento ou procedimento. Ocorre que a obrigação do médico deriva do direito do paciente, ela não existe per se, dessa forma, tomar a obrigação do médico em apartado do direito do paciente consiste em sua objetificação.

Isto é, para o Principialismo, a obrigação do médico de fazer o bem existe sem importar a pessoa para quem o bem estaria sendo feito, logo, a objetifica, transformando em mero objeto de uma decisão profissioonal que a desconsidera como ser humano. Nesse sentido, o Principialismo sustenta que um direito pode ser violado com base em um princípio, o que é inaceitável.

Os direitos são consensos morais construídos ao longo do tempo que foram formalmente reconhecidos em lei e os profissionais de saúde não têm um status moral superior que lhes confira o poder de violar direitos. Ao revés, o direito do paciente vincula os profisisonais de saúde e lhes confere uma moralidade externa a ser respeitada. Ainda, a obrigação profissional deriva do direito, logo, não pode ser empregada para violá-lo.

Essas reflexões têm o intuito de demonstrar, de forma sintética, que o Principialismo não se coaduna com o Cuidado Centrado no Paciente e o respeito aos seus direitos. O Principialismo é uma vertente ética que ampara a objetificação do paciente e o protagonismo do profissional de saúde tanto no cuidado, como na decisão do que seja moralmente relevante. É urgente que a comunidade bioética reflita sobre o mantra dos quatro princípios e busque novos referenciais bioéticos.

Por que ainda o Principialismo como teoria ética da prática clínica? 

Aline Albuquerque, aqui no Blog.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília. Coordenadora do Observatório Direitos do Paciente da Universidade de Brasília. Pesquisadora Visitante na Universidade de Oxford. Pós-doutorado pela Universidade de Essex. Doutorado em Ciências da Saúde. Autora dos livros Bioética e Direitos Humanos, Direitos Humanos dos Pacientes e Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. Membro da Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente. Membro do Comitê Hospitalar de Bioética do Grupo Hospitalar Conceição e do Comitê Hospitalar de Bioética do Hospital de Apoio de Brasília. Membro do Redbioética da UNESCO.

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