Comumente, no ambiente hospitalar, há a divulgação em cartilhas cartazes, sites e folhetos dos “direitos e deveres dos pacientes”. Por exemplo, como direitos, são enumerados o direito à privacidade e o direito ao consentimento informado, e, enquanto deveres, respeitar os demais pacientes, seguir as instruções dos profissionais e os regulamentos do hospital. Assim, verifica-se que, no Brasil, os profissionais e gestores de saúde, quando indagados sobre os direitos dos pacientes, também fazem alusão aos “deveres dos pacientes”, como se o binômio fosse óbvio e juridicamente apropriado.
Esse binômio “direitos e deveres dos pacientes”, que se disseminou, é equivocado. Explico o motivo. Os pacientes têm direitos enquanto tal, ou seja, na condição de seres humanos que se encontram sob cuidados em saúde. Os direitos do paciente derivam dos direitos humanos e possuem a finalidade primordial de proteger sua autonomia, dignidade e integridade, e se encontram previstos em legislações nacionais. Os direitos dos pacientes criam obrigações jurídicas para profissionais, gestores e organizações de saúde, mas não para o próprio paciente, logo, não há deveres dos pacientes em razão de terem direitos. Portanto, não há uma correlação entre direitos e deveres dos pacientes.
Ainda, o binômio reflete um desconhecimento acerca do que são os direitos dos pacientes. Esses direitos são aqueles que emergem do encontro clínico e balizam o comportamento dos profissionais e da organização de saúde quanto ao cuidado em saúde. Logo, não dizem respeito à relação contratual entre consumidor e hospital ou aos deveres que os pacientes têm, enquanto membros de uma dada sociedade, tais como os de não cometerem crimes ou de não tirar fotos dos outros pacientes. Ninguém pode cometer crimes ou desrespeitar a lei, sendo paciente ou não. Em consequência, não faz sentido denominar de “deveres dos pacientes” condutas que são deveres de todos nós, muito menos atrelá-las à expressão “direitos do paciente”.
Do mesmo modo, o equívoco do binômio “direitos e deveres do paciente” não implica deixar de reconhecer que os profissionais e as organizações de saúde esperam do paciente comportamentos eticamente adequados, como não mentir e ser gentil. Mas, esperar comportamentos do paciente, conforme enunciou a Diretora do IBDPAC, Claúdia Mathias, não é sinônimo de afirmar deveres jurídicos.
Além disso, alguns “deveres do paciente” apenas escamoteiam o paternalismo, como, o “dever de se responsabilizar pela recusa de tratamentos”, na medida em que o paciente tem direito à recusa sem qualquer dever jurídico correlato ou justificativa. No mesmo sentido, o “dever de seguir as instruções dos profissionais” também é uma expressão de uma tomada de decisão verticalizada e desconectada com o direito do paciente ao compartilhamento de decisões e informações. Assim, o paciente tem o direito de não seguir instruções, quando se trata da sua saúde e do seu cuidado, caso seja capaz de tomar decisões e se encontre adequadamente informado. Esses “deveres do paciente” traduzem uma visão ultrapassada do paciente que obedece às ordens dos profissionais, revelando-se em descompasso com as abordagens do Cuidado Centrado no Paciente, da Tomada de Decisão Compartilhada e do Engajamento do Paciente.
Portanto, atrelar deveres aos direitos do paciente, além de ser juridicamente inadequado, transmite uma ideia de condicionalidade, de acordo com a Diretora do IBDPAC, Nelma Melgaço. Isto é, “nós reconhecemos que você tem direitos, mas você precisa obedecer a nossos comandos”, o que é inaceitável, porquanto é uma forma dissimulada de reafirmação da posição subalterna do paciente, que ainda perdura, em grande medida, em vários hospitais.
Para melhor compreensão sobre a inexistência do binômio “direitos e deveres do paciente”, observem a tabela abaixo:
“Deveres do paciente” comumente enumerados nos hospitais | Porque não são “deveres do paciente” |
Fornecer para os profissionais de saúde informações sobre a sua saúde. | Inexiste esse dever do paciente. Os pacientes devem ser estimulados a participar e a envolverem-se em seu próprio cuidado e, consequentemente, compartilhar informação. |
Cumprir os regulamentos do hospital. | Todas as pessoas que estão em um hospital devem respeitar seus regulamentos. |
Seguir as instruções dos profissionais e expor suas dúvidas sobre as informações transmitidas. | Inexiste esse dever do paciente, os pacientes devem ser estimulados a participar e a envolverem-se em seu próprio cuidado e, consequentemente, participar das decisões sobre o seu cuidado. |
Responsabilizar-se quanto à recusa de tratamento ou de seguir as orientações dos profissionais de saúde. | O paciente não tem que responsabilizar-se juridicamente sobre a sua recusa, até mesmo porque inexiste esse tipo de autorresponsabilidade. |
Responsabilizar-se pela guarda de seus objetos pessoais. | Todas as pessoas que estão em um hospital devem se responsabilizar pela guarda de seus objetos pessoais. |
Respeitar os direitos dos demais pacientes, acompanhantes e profissionais de saúde. | Todas as pessoas que estão em um hospital devem respeitar os direitos das demais. |
Manter o ambiente limpo, organizado e zelar pela conservação das instalações do hospital. | Todas as pessoas que estão em um hospital devem manter o ambiente limpo, organizado e zelar pela conservação das instalações |
Respeitar a proibição do fumo, consumo de bebidas alcoólicas e uso de drogas ilícitas nas instalações do hospital. | Todas as pessoas devem respeitar as regras do hospital quanto à proibição do fumo, consumo de bebidas alcoólicas e uso de drogas ilícitas. |
Deixar o leito logo após a sua alta. | Essa regra diz respeito à relação contratual com a organização de saúde. |