Kalline Eler
Tradicionalmente, as crianças são vistas como pessoas vulneráveis em virtude da sua imaturidade intelectual, física, emocional e social. Assim, a fim de garantir a proteção da criança, a lei reconhece que os pais estão na melhor posição para garantir o seu bem-estar e reafirma sua autoridade para educar, disciplinar e cuidar dos seus filhos.
Embora esse seja o curso natural, observa-se, contemporaneamente, que a responsabilidade parental tem sido equivocadamente interpretada como sendo a exigência de que os pais assegurem para a criança uma vida perfeita. De modo bastante limitado, essa vida perfeita é compreendida em termos de educação de qualidade para garantir um bom emprego, uma condição de saúde completamente livre de doenças e relacionamentos sempre felizes.
Para alcançar esses objetivos e transformar a criança em um adulto bem-sucedido, os pais se valem de quaisquer instrumentos disponíveis, desde manuais e consultores sobre os mais variados temas da infância até aparelhos tecnológicos para monitorar os passos, a rotina e a saúde dos seus filhos.
A ênfase desmedida na necessidade de segurança e de proteção da criança e a visão do papel quase determinante dos pais no futuro dos filhos têm aumentado a pressão para que eles façam tudo o que puderem a fim de produzirem a melhor criança. Nesse contexto de excessos de cuidados e de supervisão, os pais têm sido apelidados de “pais helicópteros”, pois se sentem no dever de solucionar todos os problemas dos filhos e de protegê-los dos possíveis e imagináveis perigos. Entretanto, esse comportamento tem sido bastante prejudicial à saúde, especialmente, a saúde mental dos adolescentes.
Algumas pesquisas já demonstraram que os estudantes cujos pais tinham essas características (os chamados “pais-helicóptero”) tinham menos bem-estar psicológico e mais propensão a tomar medicamentos receitados para ansiedade e depressão (TWENGE, 2020). Nota-se que a proteção excessiva, além de prejudicar a confiança do adolescente, aumenta sua vulnerabilidade.
Assim, é preciso urgentemente repensar a relação de parentalidade; encará-la, primeiramente, não como uma performance, um projeto para os pais se sentirem orgulhosos, mas como um relacionamento real de cuidado, cheio de surpresas e de aprendizados recíprocos. Um pai ou uma mãe que não está aberto para aprender com seu filho e que pensa que tem sua vida resolvida está se privando de viver muitas das alegrias que o relacionamento com a criança pode proporcionar: o maravilhamento, a espontaneidade, o brincar, a emoção de ver, sentir, e tocar em algo pela primeira vez, o viver o tempo presente. É um erro tremendo não estar aberto à mudança; não aprender com as crianças e não perceber que as coisas que normalmente são consideradas importantes para os adultos (carreira, status, dinheiro), na verdade, não são prioridades para uma criança.
Tratando-se de uma relação de cuidado, mister reconhecer que não apenas a criança encontra-se na condição de vulnerável, mas igualmente seus pais. A vulnerabilidade é uma condição ontológica do ser humano que, sendo um ser relacional, encontra-se inevitavelmente suscetível ao dano e ao sofrimento. Porque somos vulneráveis, o cuidado é essencial para nossa sobrevivência, sendo o aspecto moralmente mais valioso do ser humano (HERRING, 2016).
Principalmente no âmbito da saúde, o verdadeiro cuidado é aquele que busca satisfazer os interesses do outro e para isso a sua perspectiva é devidamente considerada. O cuidado responsivo respeita as peculiaridades e busca as novidades que o outro tem a oferecer; encontra formas de trabalhar em conjunto e de unir as forças. Não se trata de criar no outro aquilo que queremos que ele seja, mas descobrir nele algo novo (HERRING, 2022).
No que tange ao cuidado em saúde da criança, o reconhecimento da sua vulnerabilidade e da sua necessidade de proteção não pode anular seu papel de ator central nos seus cuidados. Assim, é preciso descobrir com o que as crianças se importam, permitindo que elas desfrutem daquilo que tem mais valor para si. Cuidar, portanto, é descobrir o que preocupa o outro e ajudá-lo a florescer nesse ambiente.
Em suma, os melhores interesses da criança na saúde não serão alcançados ignorando ou minando a contribuição que as próprias crianças são capazes de fazer em prol do seu bem-estar. Ao contrário, devem ser definidos com a participação das suas perspectivas tão singulares (ELER, 2020).
Referências:
ELER, Kalline. Capacidade jurídica da criança e do adolescente na saúde. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
HERRING, Jonathan. Pre-natal testing, excessive parenting and care ethics, The New Bioethics, 2022.
________. Vulnerable adults and the law. Oxford Universit Press, 2016
TWENGE, Jean M. IGen: Por que as crianças superconectadas estão crescendo menos rebeldes, mais tolerantes, menos felizes – e completamente despreparadas para a vida adulta, 1 ed. São Paulo, 2018