Kalline Eler
O reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direito, no contexto brasileiro, foi promovido, especialmente, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), representando uma mudança fundamental na percepção tradicional segundo a qual as crianças e os adolescentes seriam objeto de proteção e “propriedade” dos seus genitores.
O ECA, entretanto, apesar de prever direitos como o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer e outros, não previu a criança e o adolescente como sujeitos de direito nos cuidados em saúde. Com efeito, o ECA trata a criança e o adolescente no contexto do cuidado em saúde exclusivamente a partir da perspectiva do acesso aos bens e serviços, regulando a condição da criança e do adolescente na posição de consumidor ou de usuário.
Observa-se que a criança tanto na posição de usuária quanto na de consumidora, a sua relação é com o serviço e não com os profissionais responsáveis pelos seus cuidados que não se veem como agentes promotores dos direitos da criança.
Assim, o ECA, ao tratar da saúde da criança e do adolescente, foca em deveres estatais endereçados a assegurar a progressiva realização do direito à saúde, contudo, não dispõe sobre como se dará o cuidado da criança e do adolescente a partir do momento em que eles têm acesso aos serviços de saúde (ELER, 2020).
O acesso aos tratamentos, exames, medicamentos e outros serviços de saúde é de extrema importância e demanda políticas públicas distributivas de alocação de recursos sanitários. Entretanto, igualmente relevante é a consideração da criança e o adolescente como pessoas titulares de direitos quando submetidas a cuidados em saúde.
Essa ausência do reconhecimento da criança e do adolescente enquanto paciente e titulares de direitos nos cuidados em saúde, na verdade, insere-se em um contexto maior que reflete a realidade dos pacientes no Brasil.
Embora o reconhecimento dos direitos dos pacientes pelas legislações de vários países do mundo seja da década de 90, no Brasil, até hoje não temos uma lei, existindo apenas o projeto de Lei 5.559 de 2016.
O Brasil, portanto, está bem atrasado em relação a um consenso internacional já consolidado em torno da ideia de que os pacientes são titulares de direitos básicos e esse atraso reverbera na dificuldade de se enxergar a criança e o adolescente como sujeito de direitos nos cuidados em saúde.
O atraso é ainda mais perceptível quando se identifica, por exemplo, alguns documentos no âmbito da Europa que demonstram a preocupação com a garantia dos direitos da criança nos cuidados em saúde. Em 2015, o Escritório Regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a Europa lançou uma série de seis volumes dos Direitos da Criança em cuidados de saúde primários e a Carta de Direitos da criança hospitalizada (2017). Esses documentos visam traduzir os direitos da criança consagrados na CDC em ações práticas aplicáveis aos cuidados em saúde. Em 2018, O Comitê de Ministros do Conselho da Europa adotou novas Diretrizes para cuidados em saúde da criança cujo objetivo é propor uma abordagem integrada para os cuidados da criança, colocando seus direitos, suas necessidades no centro das atividades relativas aos cuidados em saúde. Cita-se, ainda, a Carta de Direitos da Associação Europeia para Crianças Hospitalizadas que, apesar de não ser um documento jurídico, vinculante; serviu de base para elaboração das legislações sobre cuidados em saúde da criança e das diretrizes profissionais de vários países europeus, além de ser referenciada em diversas pesquisas e publicações científicas.
Todos esses documentos trazem direitos da criança relativos ao cuidado em saúde e, a partir disso, constata-se que há um hiato muito grande entre a proteção dos direitos da criança enquanto paciente na esfera europeia e na esfera latino-americana, especialmente o Brasil.
Diante desse quadro, torna-se imprescindível a aplicação da Convenção Sobre os Direitos da Criança – CDC, no contexto dos cuidados em saúde para que a criança e o adolescente sejam respeitados enquanto titulares de direitos quando estiverem na condição de paciente. A CDC introduziu no cenário internacional uma perspectiva centrada na criança e, ao prever direitos como participação, informação e privacidade, inspirou mudanças legislativas nos países e a promulgação de normas específicas para proteger os direitos da criança no âmbito do cuidado.
ELER, Kalline. Capacidade Jurídica da Criança e do Adolescente na Saúde, 2020.