Aline Albuquerque
O uso das expressões “humanizar o cuidado”, “humanização da saúde”, “cuidado humanizado”, dentre outras que fazem emprego do termo “humanizar” e assemelhados, é corrente na esfera da saúde. Particularmente, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), adotou-se a Política Nacional de Humanização e o HumanizaSUS. Em tal contexto, na página do Ministério da Saúde, humanização é definida como “a valorização dos usuários, trabalhadores e gestores no processo de produção de saúde.”1 Como se nota, a definição de humanização, oficialmente adotada pelo HumanizaSUS, não diz respeito à relação entre profissional de saúde e paciente ou ao protagonismo do paciente em seu cuidado. Ao revés, humanizar, de acordo com o HumanizaSUS, é valorizar todos, equalizando-os no ecossistema da saúde.
Portanto, constata-se que a abordagem da Humanização no SUS, conforme a demarcação conceitual apontada, não diz respeito à “Revolução do Paciente”, o novo paradigma do cuidado em saúde que é fruto de um movimento social, científico, jurídico, sanitário, cultural e ético originado no século XXI2. A “Revolução do Paciente” consiste no deslocamento do paciente situado como objeto de intervenções e de procedimentos para participante ativo e protagonista do seu próprio cuidado. A “Revolução do Paciente” estrutura-se, teoricamente, com base em distintas abordagens, tais como a do Cuidado Centrado no Paciente, da Tomada de Decisão Compartilhada, do Direito do Paciente, do Engajamento do Paciente, da Experiência do Paciente e da Empatia Clínica.
Nesse sentido, na página oficial da “Política Nacional de Humanização – HumanizaSUS” não há nenhuma alusão ao paciente3. No documento da Política Nacional de Humanização, de 2004, há 3 menções aos pacientes: a primeira, quanto à troca de saberes “(incluindo os dos pacientes e familiares), diálogo entre os profissionais e modos de trabalhar em equipe”; e as segunda e terceira são semelhantes: “Equipe multiprofissional (minimamente com médico e enfermeiro) de atenção à saúde para seguimento dos pacientes internados”4. No documento de 2013 sobre a Política Nacional de Humanização, há apenas uma referência aos pacientes: “Os usuários não são só pacientes”5.
Neste artigo não se objetiva discorrer amplamente sobre a ausência do paciente, enquanto protagonista do seu próprio cuidado, na abordagem da Humanização no SUS, mas tão somente levantar a problemática acerca da falta de debate na esfera da saúde sobre a necessidade do SUS de contar com novas políticas públicas que incorporem a “Revolução do Paciente”.
Com efeito, a despeito da importância do referencial da Humanização no SUS, é imperioso que se reconheça os seus limites, inclusive teóricos e de linguagem para incorporar um novo arcabouço no SUS que seja alicerçado no Cuidado Centrado no Paciente, na Tomada de Decisão Compartilhada, no Direito do Paciente, no Engajamento do Paciente, na Experiência do Paciente e na Empatia Clínica. O fato de se apontar para a tentativa inapropriada de enquadrar essas novas abordagens no referencial da Humanização, significa compreender que os objetivos, as premissas, as teorias e as propostas da Humanização da Saúde são distintas das abordagens que estruturam a “Revolução do Paciente”.
É comum encontrar essa confusão, ou seja, entre Humanização da Saúde e as abordagens que fundamentam a “Revolução do Paciente”. Pode-se conjecturar uma série de razões para essa confusão e a ideia de que a Humanização da Saúde dá conta dessas novas abordagens, mas não é o escopo deste artigo aprofundar esse tema. Apenas para suscitar a reflexão, aventa-se a hipótese de que o desconhecimento dessas novas abordagens e a falta de abertura para conhecê-las fazem com que as pessoas insistam na Humanização da Saúde como uma resposta a inúmeros problemas e falhas no cuidado em saúde relativos ao desrespeito aos direitos do paciente, à mitigação da sua voz e ao seu alijamento das decisões sobre o seu cuidado. Desse modo, é patente que o referencial da Humanização da Saúde dialoga com a “Revolução do Paciente”, mas não é suficiente, nem adequado para impulsionar a mudança que o SUS necessita no que toca ao protagonismo do paciente.
Espera-se que, paulatinamente, o SUS incorpore as novas abordagens conformadoras da “Revolução do Paciente”, reconhecendo que não se trata de valorizar todos os atores do ecossistema da saúde, mas sim de sustentar a premissa ética de que o cuidado deve ser centrado no paciente. Isto é, o paciente é o principal decisor acerca do seu corpo e saúde, cuja vulnerabilidade cognitiva, emocional e física há que ser considerada. Além disso, a assimetria de poder e de informação entre profissionais, gestores e pacientes conduz ao rechaço da ideia de que são atores equalizados. Assim, não obstante a relevância da Política Nacional de Humanização, a “Revolução do Paciente” impõe uma reflexão mais profunda e contundente sobre o papel do paciente, alçando-o a titular de direitos e a membro da equipe de saúde, para tanto, o SUS deve adotar políticas públicas que materializem essa revolução no cotidiano do cuidado em saúde, promovendo uma mudança de cultura na saúde, necessária e responsiva à visão atual de cuidado de qualidade e respeitoso.
1 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/humanizasus. Acesso em: 5 jun. 2024.
2 ALBUQUERQUE, A. TANURE, C., 2023, Healthcare bioethics: a new proposal of ethics for clinical practice. History and Philosophy of Medicine, Vol 5, No 2.
3 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/humanizasus. Acesso em: 5 jun. 2024.
4 MINISTÉRIO DA SAÚDE. HumanizaSUS. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/humanizasus_2004.pdf. Acesso em: 5 jun. 2024.
5 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Política Nacional de Humanização. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_humanizacao_pnh_folheto.pdf. Aceso em: 5 jun. 2024.