Quando se fala em Bioética, comumente, as pessoas pensam que estamos tratando do Princípio do Respeito à Autonomia, da Beneficência, da Não-Maleficência e da Justiça. Então, escolhem um desses Princípios para justificar as mais variadas condutas, mesmo que de forma irrefletida ou incoerente com as teorias que os fundamentam. Assim, na prática clínica, o que inclui a atuação de Comitês Hospitalares de Bioética, esses Princípios são utilizados, como se fossem a “Bioética”, e os aplicadores se sentem confortáveis, afinal, “estão sendo bioeticistas”.
Ocorre que esses Princípios, formulados em 1979 por Beauchamp e Childress em sua obra “Princípios de Ética Biomédica”, são apenas uma das inúmeras vertentes da Bioética. Ao longo desses anos, edições do livro foram lançadas, nas quais conceitos e posições foram revistos. No entanto, o cerne das proposições dos autores se mantém, ou seja, a de uma ética biomédica, como o próprio título do livro expressa, e não uma Bioética do Cuidado em Saúde.
O Principialismo foi importante na década de setenta ao apontar a premência de se respeitar a autonomia do paciente, em um momento no qual o paternalismo era vigente e o paciente era visto como objeto do cuidado. No entanto, estamos em 2024, contexto no qual o paciente é considerado o centro do cuidado, parceiro da equipe de saúde e detentor de direitos de paciente que são comandos para os profissionais. Essa mudança de paradigma não repercutiu no Principialismo, que se mantém como uma vertente bioética fundada em princípios que se justificam a partir das obrigações dos profissionais de saúde e não dos direitos dos pacientes. Desse modo, o Principialismo emana regras para os profissionais, como a de fazer o bem, a despeito do que isso significa para o paciente, desconsiderando a sua centralidade no cuidado e o seu direito de tomar decisões conforme sua vontade e preferências. Conseguintemente, aparentes conflitos morais são criados, como, por exemplo, o suposto conflito entre a obrigação de beneficência do profissional e o direito do paciente de recusar um tratamento de quimioterapia. Esse conflito é apenas aparente, na medida em que inexiste a obrigação do profissional de fazer o bem per se, essa obrigação deriva do direito do paciente de se autodeterminar, logo, fazer o bem para o paciente se condiciona àquilo que ele entende como bem-estar e qualidade de vida.
Além desse aspecto, o Principialismo não incorporou a promoção da autonomia pessoal do paciente de modo a engajá-lo no seu cuidado e no processo de tomada de decisão; e, principalmente, considera problemas bioéticos aqueles que incomodam os profissionais e não os pacientes. Isto é, as pesquisas apontam que os pacientes consideram como principais problemas morais no seu trato, aqueles que se referem à comunicação com os profissionais, como o fato de não serem escutados ou validados, e à segurança do paciente, que se vincula aos danos que sofrem. Esses problemas morais não são considerados pelo Principialismo. Ademais, o Principialismo não se ocupa da prática clínica diária, revelando-se uma vertente ética focada em “dilemas éticos complexos”, deixando de lado os problemas éticos cotidianos que emergem dos cuidados em saúde.
Desse modo, o Principialismo é uma vertente da Bioética ultrapassada, protagonizada pelo profissional de saúde e que vem sendo utilizada para sustentar o paternalismo, notadamente por meio do Princípio da Beneficência. Nota-se, ainda, que ao longo dos anos, o Principialismo não contribuiu para alterar o quadro de objetificação do paciente e do descaso com a sua segurança, o que se reflete no número de danos e mortes associados aos cuidados em saúde. Diante de tal contexto, estamos propondo uma nova Bioética Clínica, a Bioética do Cuidado em Saúde, ancorada na centralidade do paciente e no respeito aos direitos do paciente, considerados prescrições ético-jurídicas que estabelecem uma ética mínima nos cuidados em saúde. É hora de a Bioética Clínica incluir o paciente, considerando a sua perspectiva, seu protagonismo decisório, bem como reconfigurar a seleção dos problemas morais que serão alvo de sua análise e estudo. A Bioética do Cuidado em Saúde também deve ser uma vertente a levada em conta pelos Comitês Hospitalares de Bioética, que ainda são distantes dos pacientes. Portanto, um novo horizonte na Bioética Clínica se abre, o qual deve ser refletido nos cursos, pesquisas e Comitês e na adoção da Bioética do Cuidado em Saúde, como uma resposta da Bioética Clínica ao novo paradigma da centralidade do paciente.