Estranhamente, em alguns meses no Ministério da Saúde, eu já ouvi várias vezes que não existe paciente no Sistema Único de Saúde (SUS), apenas usuário. Esse apagamento da condição de paciente e a negação da sua existência no SUS devem ser investigados com profundidade, o que não é o objetivo deste artigo. Essa negação de uma condição humana real e reconhecida nas normativas de vários países em todos os continentes, pela OMS e órgãos de direitos humanos, deve ser objeto de reflexão. Além disso, a negação da condição de paciente e, por consequência, dos seus direitos, causam atrasos históricos para a sociedade brasileira, como a não inserção nas políticas públicas do Cuidado Centrado no Paciente, a inexistência de uma política nacional de segurança do paciente, a falta de uma lei nacional de direitos do paciente, de disclosure, de diretivas antecipadas e tantos outros atrasos.
O usuário, como já dissemos em vários outros trabalhos, é aquele que faz uso de um serviço, você pode ser usuário do serviço de telefonia, de gás ou de saneamento. O fato de fazer uso de um serviço não o torna paciente, que é uma condição específica atrelada à saúde. Assim, o paciente é a pessoa que se encontra sob cuidado de um profissional de saúde. A definição de paciente não está etimologicamente ligada à passividade, como corriqueiramente se divulga, mas a uma condição de vulnerabilidade acrescida, cognitiva, emocional e física. Essa condição decorre de o fato do paciente possuir necessidades específicas que são atendidas na relação de cuidado com o profissional, a qual por si só já possui aspectos curativos, isso pode ser afirmado com base nos estudos relativos ao modelo biopsicossocial de saúde-doença e de empatia clínica.
Nota-se, então, que reduzir uma condição humana complexa como a de paciente à de usuário, não apenas é um equívoco semântico e uma atitude reducionista em face da realidade, mas também uma negação de direitos humanos. Existe consenso internacional de que os direitos dos pacientes (não dos usuários) decorrem dos direitos humanos, isso porque ser paciente é estar numa relação assimétrica de poder e de informação, na qual foi historicamente alijado das decisões sobre seu corpo e sua saúde, e nem mesmo escutado. Portanto, estamos falando de uma relação em que há uma pessoa que é comumente subalternizada, e que os direitos humanos são a principal ferramenta para transformar relações dessa natureza. Além disso, quando falamos de direitos humanos dos pacientes, estamos focando em sua dignidade, autonomia e integridade, os pilares axiológicos de tais direitos.
Mais uma vez, repito que é, no mínimo estranho, afirmar que o paciente não existe e apenas a pessoa que faz uso de um serviço, desconsiderando o mundo real, ou seja, o mundo no qual as pessoas adoecem, se fragilizam, buscam serem cuidadas e morrem. Creio que há uma dificuldade em reconhecer que é preciso, ao mesmo tempo, “empoderar” o paciente, conferindo-lhe um papel ativo na construção de políticas públicas e no seu próprio cuidado, e levar em conta que a condição do adoecimento acarreta vulnerabilidades particulares e que há sofrimento, angústia, medo e ansiedade atrelados a essa condição.
Pode-se aventar que negar o paciente seja uma forma de afirmar o “poder do cidadão”, criando uma ficção do que seja cidadão, descolada da experiência do adoecimento humano e das fragilidades do envelhecimento e do morrer. Parece que o apagamento do paciente e a sua redução a usuário são uma tentativa de afirmar seu papel ativo, mas que não funciona na prática, pois a fragilidade humana não pode ser apagada, nem a importância da relação humana entre profissional de saúde e paciente, seja para reconhecer seus efeitos benéficos para o paciente ou para lidar com suas consequências deletérias, mas que precisam ser nomeadas e enfrentadas pelo SUS.
Alguns argumentos contra o paciente no SUS vão na linha de que as suas principais vertentes são a prevenção e a promoção da saúde, e que nesses âmbitos não há paciente. Esse ponto não está em discussão, isso é evidente, mas o que precisa ser considerado é que existe outra vertente do SUS, o cuidado de uma pessoa, com uma biografia, necessidades, emoções, e vontade próprias. Não se encontra inteligível esse argumento que restringe o SUS a uma concepção coletiva de saúde.
Enfatiza-se que caso os médicos, os enfermeiros, os fisioterapeutas e outros profissionais de saúde comecem a denominar os pacientes de usuários, isso trará um prejuízo enorme para a valorização de empatia, da compaixão e de outros aspectos relacionais essenciais para um cuidado de qualidade.
Em inúmeros sistemas de saúde pelo mundo, as pessoas que são atendidas por profissionais de saúde não são chamadas de usuárias, inclusive,para o movimento de direitos humanos há consenso de que os pacientes existem e que possuem direitos como tal. No campo da saúde, desde o começo do nosso século, tem-se buscado reafirmar que o cuidado é centrado no paciente, não na doença, no profissional, nem na gestão do serviço. No Brasil, indaga-se se continuarmos negando a existência do paciente, vamos construir um campo novo “Cuidado Centrado no Usuário”, na contramão de todos os movimentos de participação, de engajamento e de envolvimento do paciente, bem como da luta pelos seus direitos humanos.