Aline Albuquerque
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a ocorrência de eventos adversos devido a cuidados inseguros é provavelmente uma das 10 principais causas de morte e incapacidade no mundo. Todos os anos, 134 milhões de eventos adversos ocorrem em hospitais em países de baixa e média renda, devido a cuidados inseguros, resultando em 2,6 milhões de mortes. Globalmente, até 4 em cada 10 pacientes sofrem danos associados aos cuidados de saúde primários e ambulatoriais e, aproximadamente, 80% desses danos são evitáveis[1]. Portanto, a ocorrência de danos associados aos cuidados em saúde é uma realidade global, bem como uma questão de saúde pública e de direitos humanos. A sua prevenção está atrelada à capacidade dos sistemas de saúde de aprender com os eventos adversos por meio de uma cultura não punitiva, restaurativa e de aprendizagem. Essa cultura pressupõe que os profissionais de saúde possam revelar para os pacientes o evento adverso e o dano associado de forma honesta, acessível e empática. Para tanto, é necessário que se estabeleça o “Duty of Candour” ou o “Dever de Sinceridade” dos profissionais de saúde.
O “Duty of Candour” ou o “Dever de Sinceridade” dos profissionais de saúde é entendido como a “qualidade de ser aberto e honesto”, enquanto um atributo positivo pessoal. A sinceridade do profissional de saúde é uma forma específica de honestidade que inclui revelar informações privilegiadas para pessoas que se encontram em posição de desvantagem quanto ao acesso a tais informações. No contexto da segurança do paciente, ser sincero tem implicações para a relação clínica entre pacientes e profissionais, mas também para as instituições e sistemas de saúde em termos de criar as condições necessárias para que os profissionais se sintam capazes e apoiados para serem sinceros sobre os eventos e os danos associados.[2]
O dever dos profissionais de saúde de serem sinceros para com os pacientes é parte fundamental da ética dos cuidados em saúde. A sinceridade e a honestidade são essenciais para a confiança do paciente nos profissionais e nos sistemas de saúde, o que impacta diretamente nos resultados clínicos e na prevenção de doenças e agravos.[3]
Em novembro de 2014, a Inglaterra introduziu o “Dever de Sinceridade” na lei para que instituições de saúde sejam sinceras e abertas com os pacientes após a ocorrência de dano associado aos cuidados em saúde. O fator que impulsionou essa previsão legal foi uma recomendação constante do relatório do inquérito público sobre as falhas no Mid Staffordshire NHS Foundation Trust, após revelações sobre precários padrões de cuidados e a negligência em relação aos pacientes, entre os anos de 2005-2009.[4]
É urgente que no Brasil seja adotada legislação sobre o “Dever de Sinceridade” das instituições e profissionais de saúde para que sejam sinceros com os pacientes quando ocorrer um evento adverso e dano grave ou morte. No entanto, apenas a previsão legal de tal dever não é suficiente, as instituições de saúde devem promover uma série de medidas visando prover apoio para o profissional e reparar integralmente os pacientes e familiares, alicerçadas em uma cultura de aprendizagem e restaurativa. Essa profunda mudança demanda inovação legislativa, alteração na formação dos profissionais de saúde, reformulação da cultura organizacional das instituições de saúde, remodulação da atuação de entidades de vigilância sanitária e uma profunda disposição da sociedade brasileira em enfrentar as mortes evitáveis de inúmeros pacientes.
[1] WHO. Patient Safety. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/patient-safety. Acesso em: 10 fev. 2023.
[2] KELLY, Catherine; QUICK, Oliver. The legal duty of candour in healthcare: the lessons of history? NILQ 70(1): 77–92, 2019.
[3] QUICK, Olivier. Duties of Candour in Healthcare: the Truth, the Whole Truth, and Nothing But the Truth? Medical Law Review, v. 30, n. 2, p. 324–347, 2021.
[4] KELLY, Catherine; QUICK, Oliver. The legal duty of candour in healthcare: the lessons of history? NILQ 70(1): 77–92, 2019