Há algum tempo eu venho me dedicando ao estudo do disclosure na saúde, o que resultou no meu último livro sobre o tema1. Cada vez mais, ao me aprofundar nesse estudo, percebo o quanto o disclosure e a sua implementação são complexos, mesmo nos países em que há lei sobre o disclosure, política pública e um certo nível de cultura organizacional. Os fatores que lhe conferem essa complexidade são distintos, mas, talvez, o que chama mais atenção é o fato de que o disclosure envolve emoções e sentimentos fortes, quebra de confiança e expectativas sociais, assim como aprender a lidar com nossas vulnerabilidades. Por isso, a lei e a política pública, indispensáveis para o seu avanço, não são suficientes, muito menos a mera adoção de um protocolo de disclosure por uma organização de saúde.
Na contramão dessa compreensão, comumente, as pessoas tendem à simplificação do disclosure, transformando-o em mais um protocolo, dentre os vários que as organizações de saúde adotam. De fato, uma dada organização pode contar com um protocolo de disclosure e, quando ocorre um evento adverso, envidar esforços para implementá-lo. E eu não invalido essa disposição positiva das organizações. Mas, o disclosure não é um protocolo. O disclosure é, antes de tudo, uma expressão do direito do paciente de saber o que aconteceu com ele, isso nas palavras de Lucian Leape2, um dos maiores especialistas no tema do mundo. Nota-se que o disclosure tem uma dimensão ética, seja na demonstração do compromisso da organização e dos profissionais envolvidos com o respeito ao direito do paciente, seja por meio do exercício do seu dever de honestidade. Dessa forma, se a organização de saúde não parte dessa premissa, o disclosure poderá ser reduzido à visão errônea de que consiste apenas em um protocolo, suprimindo a sua essência ética e complexa.
O disclosure é um conjunto de medidas, comunicacionais, reparatórias e restaurativas, baseado numa abordagem compreensiva e empática, que abarca, notadamente: a prestação de cuidados em saúde, caso o paciente necessite; a provisão de informação para o paciente e o familiar sobre o evento adverso e as suas consequências, oportunizando espaços seguros de fala e escuta para ambos; o pedido de desculpa; e a adoção de medidas preventivas de eventos futuros. Além disso, o disclosure pressupõe que a organização de saúde forneça apoio psicológico e social ao paciente e conte com um profissional de ligação, que irá apoiá-lo durante o processo de disclosure. Caso o profissional envolvido seja uma segunda vítima, o apoio psicológico também deve estar disponível, além disso se recomenda o apoio de pares. E, ainda, a organização de saúde deve ter em seu quadro, um profissional capacitado para a realização do disclosure ou para apoiar aqueles que participarão do processo, denominado de líder do disclosure. Complementando, a cultura de segurança é indispensável, entendendo-a como uma cultura justa e restaurativa, na qual haja segurança psicológica para todos os profissionais envolvidos no processo.
A experiência dos países que contam com o disclosure introjetado no seu ecossistema da saúde nos ensina que o disclosure não é um mero protocolo, pressupõe um compromisso ético das organizações de saúde e do Estado, isto é, alteração de cultura, institucionalização de apoios, capacitação, lei e política pública.
No Brasil, temos um longo caminho pela frente, mas a consciência sobre a sua importância vem se expandindo, há um farol no horizonte, que nos guia na direção do respeito aos direitos do paciente e da cultura justa e restaurativa.
1 ALBUQUERQUE, Aline. Disclosure na Saúde: comunicação aberta de eventos adversos. São Paulo: Dialética, 2024.
2 Disponível no vídeo: https://youtu.be/t8hvMjoUtZM?si=3WfD3PgyseqboA8G.