A Tomada de Decisão Compartilhada (TDC) é um imperativo ético1 e modelo amplamente preconizado para a tomada de decisão nos cuidados em saúde. O General Medical Council, do Reino Unido estabeleceu que a TDC e o consentimento são fundamentais para boas práticas médicas2. Conforme o National Institute for Health and Care (NICE), do Reino Unido, em suas Diretrizes sobre a TDC de 2021, a TDC é um processo colaborativo que envolve o paciente e o profissional de saúde, atuando em parceria para se alcançar uma decisão conjunta sobre o cuidado. A TDC envolve a escolha de opções, baseadas tanto em evidências quanto em preferências, crenças e valores individuais do paciente. Na TDC, é importante o profissional se certificar de que o paciente compreende os riscos, benefícios e possíveis consequências de diferentes opções.3Quanto à ampliação do seu espectro de aplicação, cada vez mais a TDC vem sendo implementada em contextos específicos, como nos cuidados oncológicos paliativos4, no cuidado de pacientes idosos que sofreram Acidente Vascular Cerebral grave5, nos cuidados paliativos pediátricos6 e no caso de pessoas com hemofilia7.
Embora a TDC seja um comando ético decorrente do direito do paciente de participar da tomada de decisão sobre seu cuidado em saúde, a sua concretização ainda é permeada de desafios. Neste artigo tem-se como objetivo apresentar alguns de seus limites conforme o estudo de Elwyn e colaboradores, quais sejam: interesses coletivos se sobrepõem aos interesses individuais; a evidência do benefício é insuficiente ou ausente; a capacidade decisional reduzida está presente; e há uma profunda incerteza existencial8.
O primeiro limite diz respeito à situação na qual as preferências do paciente não estão condizente com o entendimento do profissional acerca do que sejam seus melhores interesses ou com interesses coletivos. Assim, caso as preferências do paciente contrariem a obrigação do profissional de respeitar a lei ou de garantir a saúde pública e a segurança do paciente, essas preferências deverão ser revistas. Como exemplo, tem-se a situação na qual os pais solicitam antibiótico para uma doença viral, o que não iria trazer benefícios para a saúde da criança e poderia aumentar a sua resistência a antibióticos9.
O segundo limite se refere à situação na qual existem evidências favoráveis a determinadas opções, em detrimento de outras, que apresentam riscos elevados, ou em que o tratamento indicado é eficaz e considerado imperativo, o padrão de cuidado amplamente recomendado pelas melhores evidências, mas as preferências do paciente não convergem com essas indicações. Muitas vezes, nessas situações, os profissionais relutam em acatar a TDC, o que se dá em grande medida pela sua obrigação moral e profissional de recomendar opções superiores em detrimento de opções inferiores.10
O terceiro limite trata do paciente que não tem capacidade decisional, o que pode ser transitório, como na perda de consciência ou quando se encontra sob a influência de algum medicamento, ou prolongado, no caso da presença de declínio cognitivo. A capacidade decisional é um gradiente e pode variar ao longo do tempo, por isso os profissionais devem realizar avaliações repetidas e estabelecer o limite no qual a TDC envolvendo pacientes com capacidade decisional insuficiente continua sendo apropriada11.
Por fim, o quarto limite da TDC concerne à sua aplicação no contexto de incertezas profundas e de doenças graves. Por exemplo, quando o paciente tem um câncer de pulmão incurável, e há um número crescente de opções de tratamento de segunda linha, como os que dizem respeito aos esforços para retardar a progressão do câncer, em vez de oferecer uma cura. Às vezes, esses tratamentos levam à remissão, mas comumente provocam efeitos colaterais graves e dolorosos e não atrasam substancialmente a progressão. No entanto, as respostas individuais variam e podem ser imprevisíveis. Nesse caso, a oferta de mais de um tratamento pode ser vista com otimismo, o que pode ser equivocado. Há evidências de que muitos profissionais se esforçam para fornecer informações sobre esses fatores complexos que são pouco digeríveis para o paciente. Ao mesmo tempo, a incerteza inerente obscurece o prognóstico de que a morte pode estar próxima, embora impossível de se prever. Outro fator importante em tal contexto concerne ao fato de que a compreensão racional do paciente pode estar minada pelo medo e outras fortes emoções, comprometendo o seu papel de decisor. Em tais contextos, a TDC pode não ser o melhor modelo, e envolver o paciente na tomada de decisão pode até mesmo colocar o seu bem-estar em risco.12
Assim, verifica-se que a TDC e o direito do paciente de participar da tomada de decisão são conquistas éticas, pois alçam o paciente ao patamar de agente da própria vida, mas, a sua efetivação precisa ser modulada no caso concreto, pois a interação com o profissional, os estados cognitivos e emocionais do paciente e interesses que permeiam a sociedade se interpenetram no processo decisional.
1 ELWYN, Glyn. Shared decision making: What is the work? Patient Education and Counselling, v. 104, n. 7, 2021, p. 1591-1595.
2 GENERAL MEDICAL COUNCIL. Decision making and consent. Disponível em: https://www.gmc-uk.org/professional-standards/professional-standards-for-doctors/decision-making-and-consent. Acesso em: 2 jul. 2024.
3 NICE. Shared decision making. 2021. Disponível em: https://www.nice.org.uk/guidance/ng197/resources/shared-decision-making-pdf-66142087186885. Acesso em: 2 jul. 2024.
4 RABBEN, Janick et al. Shared decision-making in palliative cancer care: A systematic review and metasynthesis. Palliative Medicine, v. 38, n. 4, 2014, p. 406–422.
5 Mead, G. Shared decision making in older people after severe stroke. Age and Ageing, v. 53, n. 2, 2024.
6 MICHIELS, EM et al. Shared decision-making in pediatric palliative care in the Netherlands. Current Problems in Pediatric and Adolescent Health Care, v. 54, n. 1, 2024, 101549.
7 THORNBURG, Courtney D.; Donna COFFIN, Donna. How clinicians and persons with hemophilia may approach shared decision-making. Expert Review of Hematology, v. 17, n. 6, 2024, p. 193-196,
8 ELWYN, Glyn et al. The limits of shared decision making. BMJ Evidence-Based Medicine August, v. 28, n. 4, 2023.
9 ELWYN, Glyn et al. The limits of shared decision making. BMJ Evidence-Based Medicine August, v. 28, n. 4, 2023.
10 ELWYN, Glyn et al. The limits of shared decision making. BMJ Evidence-Based Medicine August, v. 28, n. 4, 2023.
11 ELWYN, Glyn et al. The limits of shared decision making. BMJ Evidence-Based Medicine August, v. 28, n. 4, 2023.
12 ELWYN, Glyn et al. The limits of shared decision making. BMJ Evidence-Based Medicine August, v. 28, n. 4, 2023.