Na semana passada, uma tragédia assolou o país, abalando seriamente a comunidade da saúdee toda a sociedade brasileira, a morte do médico cirurgião pediatra, na cidade de Teresina, que ocorreu um dia após a veiculação da notícia acerca do seu indiciamento pela morte de uma criança, sua paciente. Em respeito às vítimas e ao não acesso à investigação, não serão abordados os fatos do caso. Desse modo, esta Nota, objetiva conclamar toda a sociedade brasileira e, principalmente, os gestores da saúde e os legisladores, para que seja aprovada, urgentemente, uma lei sobre o que deve ser feito após a ocorrência de um evento adverso na saúde com danos para o paciente, o que é conhecido como “disclosure aberto ”. Essa lei, que pode ser denominada de “lei de disclosure aberto”, é essencial para evitar que os profissionais de saúde, muitas vezes segundas vítimas do evento, sejam submetidas a um tratamento condenatório e punitivo, sem apoio psicológico e de seus pares.
A “lei de disclosure aberto” envolve também o acolhimento da família do paciente para que seus direitos sejam respeitados e suas emoções sejamvalidadas e que sejam tratados com empatia. As pesquisas apontam que quando a família é informada de forma empática e honesta sobre o que aconteceu a judicialização é menor, reduzindo a cultura da litigância adversarial, que destrói a relação entre profissional de saúde e paciente.
Há muito se sabe no campo da segurança do paciente que os eventos adversos geralmente estão relacionados a problemas sistêmicos e que o erro é um subproduto não intencional e indesejável, logo, a resposta adequada não é a punição do profissional, mas sim uma abordagem baseada na cultura justa e restaurativa, que busca atender às necessidades das vítimas, em primeiro plano, sejam a primeira e a segunda, bem como prevenir eventos futuros. A cultura justa e restaurativa se opõe à busca de culpados, ou seja, a ênfase recai sobre as necessidades das vítimas e a responsabilidade compartilhada, na qual as lideranças da organização tratam os profissionais de forma justa, com as devidas apurações, métodos e critérios que permitam a assunção de reparações por parte da organização, o que é completamente distinto daculpabilização isolada de um profissional.
Particularmente, no contexto dos cuidados pediátricos, os eventos adversos estão crescendo em um ritmo alarmante. Além da ocorrência frequente, esses eventos acabam resultando emsignificativa morbidade e mortalidade do paciente. Quando um evento adverso no ambiente pediátrico ocorre, várias pessoas são afetadas: a criança, sua família e os profissionais de saúde. Segundo a Academia Americana de Pediatria, os eventos adversos pediátricos demandam uma abordagem fundada na cultura justa e equitativa para divulgação empática do evento danoso e para promoção de benefícios para os pacientes, familiares e profissionais. Assim, o disclosure aberto amplia o conceito de vítima, incluindo o profissional de saúde que deu causa ao evento danoso. Ao remover a noção de culpa e o medo da punição criminal, o que pode gerar graves danos psicológicos ao profissional envolvido no evento e até culminar na sua morte, o disclosure aberto, que se fundamenta na cultura justa e restaurativa, contribui com a cura emocionalde todos os envolvidos e promove maiortransparência organizacional e entre os profissionaisde saúde, resultando em maior segurança noambiente hospitalar. Com efeito, quando os profissionais de saúde se sentem seguros para revelar o evento danoso, abre-se margem para a investigação do incidente, além de atender àsnecessidades emocionais das vítimas e incrementara cultura de segurança do paciente.
A realização do disclosure aberto quando ocorre um evento adverso pediátrico pressupõe que é fundamental o compartilhamento das informações relacionadas ao evento danoso com paciente e familiares; a oferta de meios para que possamexpressar e validar suas emoções, seguido de um pedido de desculpas, e provisão de cuidados em saúde mental e física. Esses objetivos não serão atendidos com o atual modelo de litígio
adversarial que busca, prioritariamente, a punição do agente causador do dano.
Essa mudança cultural almejada, da cultura de litigância para a cultura justa e restaurativa,demanda inovação legislativa, pois trata-se de alterar a lógica punitivista do Direito brasileiro e propiciar a criação de uma ambiência segura para que os eventos adversos sejam tratados com transparência e honestidade pelas organizações e profissionais de saúde. A culpabilização individual de eventos não intencionais é contrária à concepção sistêmica de erro nos cuidados em saúde e à obrigação ética de apoiar o profissional de saúde que também sofre em decorrência do evento. Precisamos de mais empatia nos cuidados em saúde para lidar com os familiares e paciente, bem como com os profissionais que se dedicam a cuidar diuturnamente do outro.