NOTA DE REPÚDIO IBDPAC

Atualizado em 25/08/2023
Por Aline Albuquerque

NOTA DE REPÚDIO IBDPAC

Atualizado em 25/08/2023
Por Aline Albuquerque

NOTA DE REPÚDIO IBDPAC

O INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DO PACIENTE (IBDPAC), organização da sociedade civil sem fins lucrativos, apresenta a presente Nota de Repúdio em resposta ao evento noticiado no país que envolve paciente neonato no contexto do ambiente hospitalar[1].

1.                      Primeiramente, cabe assinalar que o cuidado prestado a um bebê expressa um dos instintos humanos mais fundamentais. Sua vulnerabilidade, especialmente nos primeiros instantes da sua vida, ressoa a necessidade premente de sua proteção, o que impõe às sociedades e aos Estados a adoção de regramentos visando estabelecer comportamentos protetivos dos neonatos.

2.                    Os bebês são altamente sensíveis e responsivos de maneiras exclusivamente humanas. Eles expandem as noções estabelecidas de humanidade, para além do contraponto adulto racional versus a criança em desenvolvimento e, de forma singular, embora ainda em estágio pré-verbal, exibem, mediante ações e gestos, que é possível pensar, sentir, temer e esperar, ter perspectiva própria  e objetivos, bem como relacionamentos morais[2].

3.                      Por outro lado, os bebês, com seus corpos frágeis e pequenos, estão em maior risco de sofrerem eventos adversos que podem ocasionar deficiências permanentes e até mesmo sua morte. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS),  73% de todas as mortes neonatais ocorrem na primeira semana de vida e, aproximadamente, 36% acontecem no dia do nascimento[3]. Assim, espera-se que aqueles que se relacionam com um bebê busquem, no mínimo, preservar a sua vida e a sua saúde, física e mental.

4.                      Segundo reportagem do Portal G1, do dia 21 de agosto de 2023, um neonato prematuro, de 15 dias, foi “colocado no bolso do jaleco de uma fisioterapeuta para uma “dancinha” durante atendimento no Hospital Marieta Konder Bornhausen, em Itajaí, no Litoral Norte de Santa Catarina” . O vídeo se encontra disponível no Portal G1[4]. A a sociedade brasileira foi assolada com a repercussão na internet desse vídeo, fato esse que exige reflexão e adoção de medidas pelos órgãos e autoridades competentes.

5.                          Além do eventual cometimento de crime por exposição a perigo a vida ou a saúde, previsto no artigo 132 do Código Penal, e por submeter o bebê a situação vexatória e de constrangimento, conforme o artigo 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o comportamento desses profissionais de saúde pode apontar para uma reflexão mais profunda: a desconsideração da humanidade do recém-nascido como pessoa digna, merecedora de respeito e a falta de empatia por um ser humano em um dos estágios mais vulneráveis da sua existência.

6.                     A despeito do reconhecimento de que há condutas que aviltam a dignidade humana de pacientes neonatos, essa postura desumanizadora não é um caso isolado no mundo. O Relator Especial sobre o Direito à Saúde da Organização das Nações Unidas (ONU) constatou que, frequentemente, os neonatos não são considerados titulares de direitos humanos, embora sejam considerados legalmente como pessoas e detentores de dignidade intrínseca.

7.                      Desse modo, cabe reafirmar para a sociedade brasileira, mormente no contexto dos cuidados em saúde, que o paciente neonato é titular de direitos humanos, não sendo propriedade dos seus pais, nem objeto de intervenção médica. O seu reconhecimento, enquanto sujeito de direitos, no cenário internacional, deu-se a partir da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), adotada pela ONU em 1989, e internalizada no ordenamento jurídico nacional por meio do Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. A CDC estabeleceu uma gama de direitos humanos titularizados pelas crianças, os quais acarretam obrigações para os Estados. Assim, o neonato é titular de todos os direitos previstos na CDC e não pode ser tratado como objeto, ao contrário, deve ser protegido de condutas que manipulam seu corpo sem respeito, desconsideram o seu bem-estar e o expõem a risco.

8.                     O Comitê sobre os Direitos da Criança, enquanto órgão responsável pela interpretação da CDC e órgão de monitoramento da ONU encarregado de zelar e fiscalizar o cumprimento dos direitos das crianças pelos Estados, emitiu uma série de resoluções destacando o status do neonato como sujeito de direitos no campo dos cuidados de saúde.

9.                     Com efeito, o neonato é titular do direito à vida, previsto no art.6º da CDC, o que consiste em pré-requisito para o desfrute dos demais direitos, bem como determina para os Estados o dever de garantir sua sobrevivência, seu crescimento e seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social. A realização desse direito pressupõe que os Estados assegurem os cuidados que geram maior impacto na redução das mortes evitáveis, especialmente, os cuidados durante o trabalho de parto; nas primeiras horas de nascimento e na primeira semana de vida; e, ainda, cuidados especializados para prematuros e neonatos acometidos por alguma doença[5].

10.                 Além disso, o neonato detém direito à saúde, assegurado no art.24 da CDC, de modo que compete aos Estados zelar para que os cuidados sejam prestados por profissionais de saúde altamente qualificados, em instalações apropriadas para garantir sua segurança e, ainda, que as intervenções e medicamentos sejam baseados nas melhores evidências disponíveis[6].

11.                  A proteção dos neonatos no contexto do cuidado de saúde, imposta aos Estados,  deve ser traduzida em comandos específicos para os profissionais e as organizações de saúde, expressando que os direitos humanos não são ideias abstratas, mas ferramentas potentes para assegurar e promover o cuidado de qualidade, empático e respeitoso, com o qual todos os atores envolvidos no cuidado podem se beneficiar, ou seja, profissionais, pais e paciente.

12.                  Cabe às organizações e aos profissionais de saúde zelar pelos direitos humanos dos pacientes neonatos, reconhecendo que os cuidados neonatais sejam fundamentados na centralidade do neonato, na busca dos seus melhores interesses e, primordialmente, no respeito à sua dignidade inerente. No caso que motivou este pedido, pode-se aventar que os melhores interesses do neonato não foram considerados.

 

13.                 Em face do exposto, o IBDPAC vem, por meio desta Nota, manifestar seu repúdio a práticas desumanizadoras e objetificantes dos pacientes neonatos, e clamar que se que adote providências no sentido de que os órgãos e as autoridades competentes se manifestem e editem normas  sobre os cuidados de saúde de pacientes neonatos, de modo a estabelecer para a sociedade brasileira e, particularmente, para os profissionais e as organizações de saúde, comandos ético-jurídicos basilares e fundamentais acerca do tratamento digno e respeitoso do paciente neonato, bem como sobre a consideração primordial dos seus melhores interesses nos cuidados neonatais.


[1] G1. ‘Fiquei sem chão’, diz mãe de recém-nascido colocado em bolso para ‘dancinha’ em maternidade de SC. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2023/08/21/fiquei-sem-chao-diz-mae-de-recem-nascido-colocado-em-bolso-de-jaleco-para-dancinha-em-maternidade-de-sc.ghtml.

[2] ALDERSON, Priscilla; YOSHIDA, Tamaki Babies rights, when human rights begin. In: MURRAY, J., SWADENER, B.B. and SMITH, K. (Eds.). The Routledge International Handbook of Young Children’s Rights. Abingdon: Routledge, 2019.

[3] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Survive and Thrive: Transforming care for every small and sick newborn. Vol. 29, Delicious Living. 2019. 150 p. Disponível em: http://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=rzh&AN=107961679&site=ehost-live. Acesso em 22 ago. 2023.

[4]G1. ‘Fiquei sem chão’, diz mãe de recém-nascido colocado em bolso para ‘dancinha’ em maternidade de SC. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2023/08/21/fiquei-sem-chao-diz-mae-de-recem-nascido-colocado-em-bolso-de-jaleco-para-dancinha-em-maternidade-de-sc.ghtml.

[5] ELER, Kalline. Direito ao cuidado seguro do neonato sob a perspectiva dos direitos humanos. In: ALBUQUERQUE, Aline et al. Cuidado materno e neonatal seguro: teoria e prática interdisciplinar e multiprofissional, 2021. Disponível em: https://ibdpac.com.br/e-book-cuidado-materno-e-neonatal-seguro/. Acesso em 22 ago. 2023.

[6] ELER, Kalline. Direito ao cuidado seguro do neonato sob a perspectiva dos direitos humanos. In: ALBUQUERQUE, Aline et al. Cuidado materno e neonatal seguro: teoria e prática interdisciplinar e multiprofissional, 2021. Disponível em: https://ibdpac.com.br/e-book-cuidado-materno-e-neonatal-seguro/. Acesso em 22 ago. 2023.

NOTA DE REPÚDIO IBDPAC

Aline Albuquerque, aqui no Blog.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília. Coordenadora do Observatório Direitos do Paciente da Universidade de Brasília. Pesquisadora Visitante na Universidade de Oxford. Pós-doutorado pela Universidade de Essex. Doutorado em Ciências da Saúde. Autora dos livros Bioética e Direitos Humanos, Direitos Humanos dos Pacientes e Capacidade Jurídica e Direitos Humanos. Membro da Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente. Membro do Comitê Hospitalar de Bioética do Grupo Hospitalar Conceição e do Comitê Hospitalar de Bioética do Hospital de Apoio de Brasília. Membro do Redbioética da UNESCO.

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